Por Jean-Baptiste Mallet
Com empresários celebrizados, telas finas e cores vivas, a economia digital evoca a imaterialidade, a horizontalidade e a criatividade. Porém, uma investigação sobre a gigante do comércio eletrônico Amazon revela o outro lado da moeda: fábricas gigantes em que humanos pilotados por computadores trabalham até a exaustão.
INVESTIGAÇÃO NOS ENTREPOSTOS DO E-COMMERCE
Descolando seu olhar dos cartazes do sindicato alemão Ver.di – o sindicato unificado dos serviços – presos à parede da sala de reuniões, Irmgard Schulz se levanta de repente e toma a palavra. “No Japão”, conta, “a Amazon acaba de recrutar cabras para que elas pastem em torno de um armazém. A empresa colocou nelas um crachá igual ao que temos pendurado no pescoço! Está tudo lá: nome, foto, código de barras.” Estamos na reunião semanal de funcionários da Amazon em Bad Hersfeld (Hesse, Alemanha). Em uma imagem, a operária logística acaba de resumir a filosofia social da multinacional de vendas on-line, que propõe ao consumidor comprar com alguns cliques e receber no prazo de 48 horas um esfregão, as obras de Marcel Proust ou um arado motorizado.1
Em todo o mundo, 100 mil pessoas estão trabalhando em 89 armazéns logísticos cuja superfície somada totaliza cerca de 7 milhões de metros quadrados. Em menos de duas décadas, a Amazon projetou-se na vanguarda da economia digital, ao lado da Apple, do Google e do Facebook. Desde seu lançamento em Bolsa, em 1997, seu faturamento foi multiplicado por 420, chegando a US$ 62 bilhões em 2012. Seu fundador e CEO, Jeffrey Preston Bezos, metódico e libertário, inspira aos jornalistas retratos ainda mais lisonjeiros desde que investiu em agosto último US$ 250 milhões – 1% de sua fortuna pessoal – para comprar o diário norte-americanoThe Washington Post. O tema do sucesso econômico eclipsa com certeza o das condições de trabalho.
Na Europa, a Amazon escolheu a Alemanha como carro-chefe. Ela estabeleceu ali oito plantas logísticas e construiu uma nona. Ao volante de seu carro, Sonia Rudolf pega uma avenida chamada Amazon Strasse2 – a municipalidade financiou a chegada da multinacional num valor de mais de 7 milhões de euros. Em seguida, aponta um enorme bloco de construção cinza. Atrás de uma cerca de arame farpado, surge o armazém. “No terceiro andar da FRA-1,3 não há nenhuma janela, nenhuma abertura, nenhum ar condicionado”, testemunha a ex-funcionária. “No verão, a temperatura ultrapassa os 40 graus, e os mal-estares são muito frequentes. Um dia – vou me lembrar disso por toda a vida –, quando eu estava fazendo ‘picker’ [ato de prender as mercadorias nos alvéolos metálicos], encontrei uma moça deitada no chão e vomitando. Seu rosto estava azul. Eu realmente achei que ela fosse morrer. Como não tínhamos maca, o gerente pediu-nos que conseguíssemos um palete de madeira sobre o qual a estendemos para transportá-la até a ambulância.”
Fatos semelhantes foram relatados pela imprensa nos Estados Unidos.4 Na França, foi o frio, em 2011, que atingiu os funcionários do armazém de Montélimar (Drôme), forçados a trabalhar com parcas, luvas e bonés, até que uma dúzia deles começou uma greve e conseguiu que o aquecimento fosse ligado. Foi assim, em parte, que a Amazon catapultou seu fundador ao 19o lugar entre os bilionários do planeta.5
A especificidade do supermercado on-line consiste em permitir que os comerciantes, por meio de sua plataforma Marketplace, ofereçam produtos para venda em seu site, em concorrência direta com sua própria mercadoria. O conjunto infla as cifras do negócio e faz crescer o efeito “cauda longa” – a agregação de múltiplos pequenos volumes de encomendas de produtos pouco solicitados cujo custo de armazenamento é baixo –, na origem do sucesso da empresa. Esse sistema, eficaz para o consumidor, recruta livreiros para a promoção do gigante que vampiriza a clientela deles e destrói sua atividade.
“O sorriso no embrulho não é o nosso”
O Sindicato dos Livreiros Franceses estimou que, em vendas de produtos equivalentes, uma livraria de bairro gera dezoito vezes mais empregos do que a venda on-line. Unicamente para o ano de 2012, a Associação dos Livreiros Americanos (ABA) avalia em 42 mil o número de empregos destruídos pela Amazon no setor: US$ 10 milhões em receitas para a multinacional representariam 33 eliminações de empregos nas livrarias locais.
Além disso, tudo opõe os postos de trabalho perdidos e aqueles criados nos armazéns logísticos. De um lado, desaparece um trabalho qualificado, diversificado, permanente, localizado no centro da cidade, que combina manutenção, sociabilidade, contato e conselho. De outro, emergem na periferia urbana “fábricas para vender” nas quais a produção contínua de pacotes de papelão vai ao encontro de uma mão de obra não qualificada, recrutada pela única razão de atualmente ser mais barata do que robôs. Mas não por muito tempo: desde a compra em 2012, por US$ 775 milhões, da empresa de robótica Kiva System, a Amazon prepara a utilização em seus armazéns de pequenos autômatos rolantes: hexaedros laranjas de 30 centímetros de altura, capazes, por exemplo, de deslizar sob uma prateleira para mover cargas que vão, dependendo do modelo, de 450 a 1.300 quilos.
Trata-se de reduzir para apenas vinte minutos o tempo entre a realização do pedido pelo cliente e sua expedição. Bezos tem um objetivo que se tornou lendário: oferecer, vender e liberar para a entrega qualquer mercadoria para qualquer lugar do mundo no próprio dia da encomenda. Desde sua criação, a Amazon está investindo somas faraônicas nos servidores e aumenta constantemente suas capacidades de cálculo algorítmico a fim de melhorar a eficiência de sua logística e as potencialidades de seu site de venda, o qual oferece sempre novos produtos para os clientes existentes, graças a um complexo cruzamento de dados pessoais e hábitos de consumo. E, para que nada se perca, os recursos de computação em excesso são alugados para empresas por meio de um serviço específico, os Amazon Web Services.6
Seja qual for o país onde estão instalados, os armazéns logísticos apresentam uma arquitetura e uma organização do trabalho similares. Localizados perto de pontos de confluência de estradas em áreas onde a taxa de desemprego supera a média nacional, eles são colocados sob a custódia severa de empresas de segurança. Esses paralelepípedos de metal laminado se espalham por uma superfície por vezes superior a 100 mil metros quadrados, algo semelhante a cerca de catorze campos de futebol. Eles se animam no ritmo de um balé de caminhões pesados: a cada três minutos, o grupo Amazon empanturra de pacotes um semirreboque. Apenas no território dos Estados Unidos, a empresa vendeu trezentos artigos por segundo durante as festas de Natal de 2012.
A profusão de produtos oferecidos aos 152 milhões de clientes do site se materializa nos armazéns que abrigam florestas de prateleiras de metal onde labutam trabalhadores obrigados a ficar calados pelo regulamento interno. Considerados gatunos potenciais, todos passam por revistas minuciosas realizadas por vigias: eles atravessam pórticos de segurança na saída definitiva ou no intervalo, encurtado assim por esse controle tedioso que gera longas filas. Como a Amazon se recusa a colocar os relógios de ponto dos armazéns na área da revista, os trabalhadores dos centros de distribuição de Kentucky, do Tennessee e do estado de Washington, nos Estados Unidos, já moveram quatro processos para reclamar o pagamento desse tempo de espera não remunerado que acreditam ser de 40 minutos por semana.
A gestão dos estoques da Amazon é informatizada pela lógica do chaotic storage: os artigos são dispostos de maneira aleatória nas prateleiras. Essa “arrumação caótica” apresenta a vantagem de uma flexibilidade maior que o armazenamento tradicional: não há necessidade de prever espaço adicional para cada tipo de artigo, em caso de variações na oferta ou demanda, uma vez que todos são empilhados aleatoriamente. Cada linha de prateleiras tem vários níveis; cada nível, várias células de armazenamento: são os bins (alvéolos), nos quais os escritos de Antonio Gramsci disputam espaço com um pacote de cuecas, um ursinho de pelúcia, temperos para grelhados ou o Metrópolis, de Fritz Lang.
Dentro da unidade de “recepção”, os trabalhadores eachers desfazem os paletes dos caminhões e marcam a mercadoria. Já osstowers(“arrumadores”) colocam os artigos onde podem nas imensas prateleiras para criar um bazar apenas repertoriado por um escâner wi-fi que lê códigos de barras. Para conjurar a geografia vertiginosa dos quilômetros de prateleiras, em meio a essa formidável acumulação de bens, a mais moderna tecnologia guia, controla e mede a produtividade dos funcionários que executam tarefas repetitivas, extenuantes. Na unidade dita de “produção”, os pickers(“coletores”), por sua vez, também guiados por seu escâner se deslocam rapidamente pelas prateleiras. A fim de coletar incansavelmente os artigos, eles andam mais de 20 quilômetros por jornada – número oficial das agências de trabalho temporário que os sindicalistas contestam, considerando que deve ser maior.
Uma vez que um produto é extraído, uma contagem regressiva é exibida no escâner, ordenando ao trabalhador que colete o seguinte. Sua escolha é determinada por computador para otimizar a distância de deslocamento. Quando o carrinho está cheio, os pickerso levam até os packers(“empacotadores”). Eles são estáticos e fazem os embrulhos na cadeia dos produtos, antes de empurrar os pacotes para grandes esteiras computadorizadas. Estas pesam as caixas de papelão marcadas com o sorriso da Amazon, colam os endereços e, em seguida, as dividem de acordo com os serviços postais ou as transportadoras internacionais.
“O sorriso no embrulho não é o nosso”, afirma Jens Brumma, 38, stower desde 2003. Tendo alternado momentos de desemprego com trabalhos temporários na Amazon por sete anos, ele mantém ali, desde 2010, contratos de curto prazo, já que a direção se recusa a efetivá-lo. Como acontece com qualquer assalariado no mundo, seus contratos o proíbem estritamente de se expressar a respeito de seu trabalho com a família, amigos ou jornalistas. “O silêncio que nos é imposto não é para proteger segredos comerciais, aos quais não temos acesso: é para calar a extrema dificuldade de nossas condições de trabalho.”
No final do ano, no período de pico chamado “Q4” – quarto trimestre –, equipes noturnas são constituídas e cada armazém recorre intensivamente a uma mão de obra temporária para enviar os pedidos da época das festas. “Durante essa fase”, explica Heiner Reimann, um dos funcionários permanentes especializados, designado pelo Ver.di em 2010 para iniciar e acompanhar uma ação sindical, “o número de trabalhadores nos dois armazéns passa de repente de 3 mil para mais de 8 mil. Temporários de toda a Europa chegam a Bad Hersfeld e são alojados em condições terríveis. Aqui, para lidar com esses milhares de contratos temporários, a Amazon contratou secretárias chinesas. No ano passado, elas trabalhavam em uma grande sala vazia, sem móveis, e empilhavam os contratos no chão, um por um. Era surreal.” Desempregados espanhóis, gregos, poloneses, ucranianos e portugueses convergem em ônibus dos quatro cantos da Europa, contratados por meio de agências de trabalho temporário.
“Os gestores se vangloriam desse recrutamento internacional e o exibem como motivo de orgulho”, testemunha Brumma. “Em uma festa organizada pela empresa, pediram-me que pendurasse as bandeiras de todas as nacionalidades presentes: havia 44! Os espanhóis eram os mais numerosos. Entre eles havia pessoas com diplomas importantes: um historiador, sociólogos, dentistas, advogados, médicos. Eles estão desempregados, então vêm para cá pelo tempo do trabalho temporário.”
Trabalho hard rock
O alemão Norbert Faltin, ex-executivo da área de informática abruptamente demitido em 2010, teve de concordar em se tornar da noite para o dia um operário picker temporário na Bad Hersfeld. “No inverno, fiquei hospedado por três meses com cinco estrangeiros em um bangalô normalmente usado por turistas de verão e, portanto, não dotado de aquecimento. Nunca passei tanto frio na vida. Éramos todos adultos e dormíamos em turnos em um berço.” Aqui, a eventual assinatura de um contrato com duração indeterminada marca o ápice de uma série de contratos de curto prazo durante a qual não é prudente se sindicalizar, muito menos fazer greve. E o uso maciço de mão de obra imigrante temporária antes das festas de Natal neutraliza o efeito das greves iniciadas pelo Ver.di durante esse curto período em que a Amazon, vulnerável, realiza 70% de seu volume de negócios anual.
Para honrar seu lema, “Work hard, have fun, make history” (Trabalhe duro, divirta-se, faça história), exibido em todas as suas unidades do planeta, o gigante norte-americano enquadra seus funcionários por meio de uma técnica de gestão extremamente rigorosa, a “5S”, inspirada nas fábricas de automóveis japonesas, e organiza vários eventos paternalistas, tanto durante o trabalho quanto fora dele. “Na época do ‘Q4’, os gestores difundem músicas que se repetem no volume máximo no armazém para nos excitar”, diz Sonia Rudolf. “Um dia, durante as festas, eles tinham colocado hard rock no volume máximo para nos fazer trabalhar mais rápido. Era tão alto que eu tinha dor de cabeça, me dava palpitação. Quando pedi ao gerente que diminuísse o volume, ele riu de mim porque eu tinha mais de 50 anos, dizendo que aqui éramos uma empresa de jovens. Eu era de idade e me pediam que tivesse a mesma produtividade no picking de um jovem de 25 anos. Mas, depois da morte de meu marido, não me restava escolha, eu tinha de aceitar o trabalho.”
Trabalhar vestido de bruxo
Os funcionários de Bad Hersfeld lembram-se de ter visto Bezos na inauguração do primeiro armazém alemão da empresa no verão europeu de 2000. Naquele dia, seu patrão, vindo especialmente dos Estados Unidos, havia pousado seu helicóptero no estacionamento dos funcionários para colocar as mãos cobertas de tinta em uma placa comemorativa. “Tudo é dito e escrito em inglês na Amazon. Os funcionários ali são chamados ‘hands’, as pequenas mãos”, explica Schulz. “Jeff Bezos nos tinha mostrado suas mãos dizendo no microfone que éramos todos ‘hands’, como ele, e que éramos seus associados, porque tínhamos direito a ações após vários anos na empresa. Na época, ele tinha explicado que formávamos uma grande família. Depois disso, ele chegava até a ligar por telefone, e sua voz era transmitida por alto-falante no armazém para falar conosco, para nos estimular. E isso funcionava. Tínhamos orgulho da Amazon; para nós, era o sonho americano. Mas rapidamente virou um pesadelo. É por isso que hoje eu participo das greves.”
Dispostos ao longo de uma mesa onde se amontoam panfletos, crachás, documentação legal com textos assinalados e recortes de imprensa referentes à última greve, os membros da equipe da tarde deixam prontamente suas cadeiras para ir bater ponto. “Foi muito difícil quando cheguei. Os trabalhadores estavam aterrorizados pela ideia de falar conosco ou aceitar nossos panfletos”, confessa o sindicalista Reimann, enquanto aguarda a chegada da equipe da manhã para realizar uma segunda reunião. Depois de mais de uma década na Ikea e uma sólida formação em direito do trabalho, ele começou essa missão para o Ver.di em 2010. Dando-se conta da despolitização e da falta de cultura sindical da maioria dos funcionários da Amazon, ele adaptou-se à situação e conseguiu gradualmente resultados graças a ações organizadas com base em um núcleo duro.
Desde 2011, por exemplo, os ativistas colam pequenas folhas de papel autoadesivas coloridas em todo lugar nos armazéns alemães. Em cada uma delas, uma pergunta anônima aponta um impedimento ao direito do trabalho, uma injustiça ou um desvio da normalidade. Os exemplos são sempre escolhidos pelos próprios trabalhadores, que fazem que eles sejam escritos por parentes, para que não seja possível reconhecer a letra. Essas folhas, afixadas por milhares de pessoas no local de trabalho, sem causar danos, semeiam o pânico entre os gestores. Após as deliberações realizadas durante as reuniões semanais abertas a todos, as reivindicações emergem rapidamente de Bad Hersfeld e Leipzig.
Em Leipzig, ninguém é pago segundo a tarifa do ramo negociada pelo Ver.di para a distribuição. Embora os acordos salariais das Länder orientais prevejam um salário mínimo de 10,66 euros por hora, a Amazon aplica sua própria tabela: 9,30 euros. Em Bad Hersfeld, também há diferença entre a tarifa do ramo (12,18 euros por hora) e o salário do armazém: 9,83 euros. Dois anos e meio depois das primeiras reuniões do Ver.di, cerca de seiscentos trabalhadores alemães realizam regularmente piquetes para exigir a aplicação do acordo coletivo (Tarifvertrag) do setor. Tanto é assim que os sindicalistas e seus simpatizantes usam agora abertamente, inclusive no trabalho, um pequeno bracelete vermelho com as palavras “Work hard, have fun, make Tarifvertrag”.
O resultado? Sonia Rudolf o constata por si mesma quando encontra ex-colegas passeando no centro da cidade de Bad Hersfeld: “A imagem do sindicato mudou muito. As pessoas têm cada vez menos medo de se sindicalizar, e isso se torna quase um reflexo para elas quando sofrem humilhação. Elas querem dar uma resposta para defender seus direitos e sua dignidade”.
Na França, em 10 de junho de 2013, uma centena de funcionários do armazém de Saran (Loiret) estava também em greve, atendendo ao chamado da Confederação Geral do Trabalho (CGT). Todos foram convocados individualmente no dia seguinte. “Por ser sindicalista, fui submetido a revistas arbitrárias durante meu período de trabalho”, testemunha Clément Jamin, da CGT. “Eu me recusei; então me pediram que sentasse em uma cadeira, supostamente até que a polícia chegasse. Sentei-me por seis horas na frente de todos, e a polícia nunca chegou. Eles tentaram fazer a mesma coisa no dia seguinte e no outro, e a CGT entrou com uma queixa.”
“O ritmo é extenuante”, diz, em tom sério Mohamed, operário em Saran, que pediu para permanecer anônimo. “E, em contrapartida, o que eles nos propõem? O ‘have fun’: jogos durante os intervalos, distribuições de chocolates, bombons... Mas não posso aderir à ideia de vir descarregar caminhões vestido de palhaço.” De fato, de acordo com os temas escolhidos pelos gestores, os funcionários são regularmente convidados a ir trabalhar vestidos como bruxas ou jogadores de basquete. “Enquanto isso, nossa produtividade continua, é claro, sendo gravada por computador”, prossegue. “Somos convidados a ser ‘top performers’, a nos superar para bater continuamente nossos recordes de produtividade. Desde junho de 2013, os gestores chegam até a exigir que façamos coletivamente práticas de aquecimento e de alongamento antes de assumirmos nossos postos de trabalho.”
Temporários tratados como gado
Algo inédito, o regulamento interno impõe que a produtividade individual esteja constantemente em alta. A gravação em tempo real do desempenho dos trabalhadores permite aos supervisores geolocalizá-los a qualquer momento no armazém, obter curvas e histórico de seu rendimento, mas também organizar a concorrência entre eles. Na Alemanha, Reimann descobriu há pouco tempo que essa medição, “que é uma informação pessoal, é enviada diariamente por computador a partir dos armazéns alemães para Seattle, nos Estados Unidos, onde é armazenada. Isso é totalmente ilegal!”. Ex-gestor da Amazon na França, tendo participado de treinamentos internos em Luxemburgo, Ben Sihamdi confirma essa prática que os trabalhadores ignoram: “Todos os dados de produtividade são registrados de modo centralizado no exato instante por computador e depois enviados para Seattle”.
Se os funcionários estão em concorrência, a semântica da casa também os convida a “assinalar anomalias”. “Isso pode ser uma caixa de papelão que bloqueia uma entrada”, explica Mohamed, “mas também um colega que está conversando. É preciso, então, denunciá-lo. É algo bem-visto para subir na classificação e se tornar ‘lead’, supervisor.” “Um dia”, Sihamdi relembra, “um colega me perguntou sobre a fortuna de Jeff Bezos e respondi que isso me dava vontade de vomitar. Ele me denunciou, e fui repreendido por criticar o ‘espírito Amazon’! O ambiente de trabalho é deletério; todo mundo se vigia. E os temporários são tratados como gado, o que era insuportável para mim. Eu conheço bem o mundo industrial, incluindo o do automóvel. Mas minha experiência com a Amazon é, de longe, a mais violenta da minha carreira de engenheiro.”
Quedas, mal-estar, dedos cortados na esteira, acidentes mortais entre a residência e a empresa, síndrome de burnout (depressão provocada por esgotamento físico e mental relacionado à profissão): os acidentes de trabalho são numerosos na Amazon. No entanto, a imprensa prefere elogiar o desempenho das ações da multinacional, as extravagâncias de seu fundador ou a construção de novos armazéns logísticos – as três unidades que em breve serão colocadas em funcionamento na Polônia pesam agora como uma ameaça de dumpingsalarial sobre os trabalhadores alemães. A mídia celebra a criação de empregos precários e invisíveis que vão destruir ainda mais as lojas locais.
Apoiador das greves do Ver.di, o jornalista alemão Gunter Wallraff acompanha com atenção o desenvolvimento fulgurante da Amazon. De Colônia, conta que ele próprio tentou uma queda de braço com o rolo compressor dos negócios on-line: “Quando descobri as condições de trabalho dos funcionários, imediatamente pedi um boicote e solicitei a meu editor que retirasse meus livros no site. Isso foi um problema para ele: a Amazon representava 15% de suas vendas. Depois de ter discutido a ideia, a editora alinhou-se com minha exigência. Mas, agora, a Amazon consegue material com atacadistas para continuar vendendo meus livros! E, infelizmente, não posso impedi-la de fazer isso. Sou, portanto, criticado por pessoas que dizem: ‘Você faz belos discursos, mas seus livros continuam a ser vendidos na Amazon’... Na realidade, não podemos lutar individualmente contra essa empresa. Trata-se de uma multinacional organizada segundo uma ideologia bem definida. Seu sistema não nos coloca a pergunta simples, neutra, se devemos ou não consumir em seu site; ele nos coloca questões políticas: aquela da nossa escolha de sociedade”.
Escapar dos impostos
Quer um livro seja comprado na Espanha ou um aspirador na França, no site da Amazon, o pedido será faturado em Luxemburgo pela empresa Amazon EU, que, com apenas 235 funcionários, atingiu em 2012 cerca de US$ 10 bilhões em volume de negócios, mas, graças a uma montagem financeira inteligente, apenas 20,4 milhões de lucro. Ela controla as versões nacionais das estruturas introduzidas na Europa que realizam o trabalho real da multinacional: logística, marketing, relações com fornecedores etc. No topo dessa pirâmide de holdings reina a reserva financeira da empresa, a Amazon Europe Holding Technologies SCS, propriedade de três entidades domiciliadas no estado de Delaware, nos Estados Unidos.
No coração desse andaime fiscal, a Amazon Europe Holding Technologies SCS, também domiciliada em Luxemburgo, devora e derrama rios de dinheiro: ela tinha acumulado uma reserva de 1,9 bilhão de euros no final de 2011, sem empregar um único funcionário. Esse complexo mecanismo de evasão fiscal permite que a multinacional possa fugir dos impostos dos países onde está atuando e dos quais suga somas colossais. Desde que seu diretor Andrew Cecil forneceu uma tabela para os parlamentares britânicos membros da Comissão de Finanças, seu volume de negócios francês se tornou conhecido: 889 milhões de euros em 2011. Mas as filiais francesas declaram às autoridades fiscais somas consideravelmente mais baixas, a tal ponto que são hoje objeto de um benefício fiscal de 198 milhões de euros. (J.-B.M.)
Jean-Baptiste Mallet para Le Monde Diplomatique Brasil
Jornalista, é autor da pesquisa “En Amazonie. Infiltré dans le ‘meilleur des mondes’” [Na terra da Amazon. Infiltrado no “admirável mundo novo”] (Fayard, Paris, 2013), para a qual trabalhou como funcionário temporário em um armazém francês da Amazon em novembro de 2012
1 Apesar de nossas repetidas solicitações, a Amazon não quis responder às nossas perguntas.
2 Há também ruas Amazon em Graben, em Pforzheim e em Kobern-Gondorf, na Alemanha, assim como duas na França, em Sevrey e em Lauwin-Planque.
3 Os estabelecimentos da Amazon têm todos nomes compostos por três letras e um número. Os armazéns logísticos são batizados com o nome do aeroporto internacional mais próximo; nesse caso,Frankfurt.
4 Spencer Soper, “Inside Amazon’s warehouse” [Dentro do armazém da Amazon], The Morning Call, Allentown (Pensilvânia), 18 set. 2011.
5 Bezos foi eleito empresário do ano em 2012 pela revista norte-americana Fortune.
6 A Amazon também lançou um mercado de trabalho on-line, o Amazon Mechanical Turk, que propõe aos usuários de internet executar microtarefas em troca de uma microrremuneração. Ler Pierre Lazuly, “Télétravail à prix bradés sur Internet” [O teletrabalho a preços irrisórios na internet], Le Monde Diplomatique, ago. 2006.
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